sexta-feira, 4 de outubro de 2013

A onda anti-indígena na sociedade brasileira

Da Carta Capital

Uma onda anti-indígena

 
Entrevistas com o ex-presidente da Funai Márcio Meira
 
Durante a gestão de Márcio Meira, o mais longevo presidente da Funai, foi realizada a reforma do órgão e a "desintrusão" da Terra Índigena Raposa Serra do Sol
 
por Felipe Milanez — publicado 04/10/2013 05:35

Márcio Meira é antropólogo do Museu Paraense Emilio Goeldi, com trabalho acadêmico no alto Rio Negro. Foi o mais longevo presidente da Funai, ocupando o cargo entre abril de 2007 a abril de 2012. Durante a sua gestão foi aprovada a construção da polêmica usina de Belo Monte, e também foi realizada a reforma da Funai, com um decreto de reestruturação em 2009, seguido de uma inetnsa mobilização dos índios contrário a reforma da forma como foi feita. Foi durante a sua gestão que ocorreu a desintrusão da Terra Indígena raposa Serra do Sol, e também o julgamento, no Supremo Tribunal Federal, da demarcação da reserva. É nesse julgamento que o falecido o juiz Menezes Direito sugeriu em Plenário ao Tribunal adotar 19 "condicionantes" – e até hoje não está claro se essas condicionantes estavam restritas ao caso, como é o padrão jurídico, ou se assumem uma característica de uma "nova legislação", estendendo-se de forma universal. A questão tem sido utilizada pelos ruralistas para impedir demarcações em outras regiões, bastante distantes de Roraima, onde fica a Raposa Serra do Sol.
Segundo Meira, na entrevista abaixo, enquanto ocupava o cargo, " estava claro para mim que ressurgia com força uma “onda” anti-indígena na sociedade brasileira". Para Meira, "essa onda tem a ver com o crescimento econômico acentuado dos setores primários da economia, com destaque para o agronegócio, nos últimos 15 anos e sua superlativa representação política". O agronegócio, diz Meira, "é predatório e tradicionalmente marcado pela grilagem de terras".

CartaCapital: O que está acontecendo hoje, como explicar esse ataque aos direitos indígenas?

Márcio Meira: Há alguns anos, quando ainda era presidente da Funai, já estava claro para mim que ressurgia com força uma “onda” anti-indígena na sociedade brasileira, originada sobretudo nos herdeiros das velhas elites agrárias que promovem sua investida mais recente nos territórios do Centro Oeste e da Amazônia. Trata-se de uma narrativa produzida por esses setores sociais e econômicos (cuja cadeia produtiva vai muito além da atividade agropecuária stricto sensu) e reproduzida ad infinitum, inclusive pela grande mídia de que os índios e suas terras, que seriam “exageradas”, constituem um “entrave” para o desenvolvimento do país. Como ocorreu em outros momentos de nossa história, creio que essa onda tem a ver com o crescimento econômico acentuado dos setores primários da economia, com destaque para o agronegócio, nos últimos 15 anos e sua superlativa representação política no Congresso Nacional, no Judiciário e nos Executivos federal, estadual e municipal. É verdade factual que o agronegócio brasileiro ou pelo menos a maior parte dele, é predatório e tradicionalmente marcado pela grilagem de terras. Para obter mais e mais lucros, quer agora avançar sobre terras públicas, sobretudo as Terras Indígenas. Basta ver o mapa mais recente do desmatamento da Amazônia: as “ilhas” de florestas cercadas pelas fazendas de gado ou pelo algodão e a soja, são majoritariamente formadas pelas Terras Indígenas. Na minha opinião, os ataques contra os direitos indígenas as suas terras tradicionais estão no centro desse recrudescimento porque elas estão “fora” do mercado: é sobre essas terras que se quer avançar agora e para isso, somente rasgando a Constituição. É por isso que também a FUNAI, responsável pelas demarcações conforme estabelecido na legislação, tem sido fortemente atacada por esses setores, dentro e fora do governo.

CC: Qual a ameaça dessas mudanças legislativas (PEC 215, PLP 227) para o futuro?

MM: Na prática, a ameaça é acabar com as demarcações, inclusive com a tentativa de “revisão” (obviamente para menos) de terras já demarcadas e homologadas. Imagine o Congresso ter que fazer todo o procedimento de demarcação? Não somente seria um absurdo jurídico – porque se trata de direito fundamental, portanto mexer nele é inconstitucional – como administrativo e mesmo prático, pois não há profissionais especializados nessa área no Senado ou na Câmara. É uma ameaça seríssima aos direitos indígenas, a pior desde a promulgação da Constituição há 25 anos. E merece uma reflexão das pessoas de boa fé, - mesmo aquelas que estão distantes dos povos indígenas ou tem pouco conhecimento sobre a agenda indigenista, - no sentido de se manifestarem em defesa dos direitos indígenas. Como as Terras Indígenas são patrimônio da União, são também de todos os brasileiros, e os índios são os maiores guardiões desse patrimônio constituído de florestas e outras paisagens naturais, na sua grande maioria bastante protegidas contra ações predatórias, ou seja, os índios e suas terras prestam um enorme serviço ao meio ambiente, cuja proteção é de interesse de toda a Nação.

CC: Como esse processo de força contrário aos índios se tornou tão poderoso e influente?

MM: Desde o final da década de 1990, com o passar dos anos, os segmentos anti-indígenas posicionados na sociedade brasileira, com destaque para os representantes do agronegócio, passaram a canalizar recursos econômicos, políticos e de mídia, no sentido de ocupar espaços de poder no país. A consequência desse processo político e econômico, que chamo de “onda” anti-indígena, já que se propaga e influencia outros setores da sociedade, é a cada vez maior presença relativa desses segmentos nas instâncias de poder do país, inclusive desproporcional ao seu tamanho em termos populacionais. Dessa forma, os governos, independentemente de suas colorações partidárias e suas “coalizões”, mesmo quando querem fazer cumprir os direitos indígenas (e também dos quilombolas, populações tradicionais, etc.), são permanentemente pressionados e muitas vezes tornados reféns dessas forças políticas, daí sua força e influência. Fato este que reforça, além de outros, a necessidade urgente de uma profunda reforma política no Brasil.

CC O que pode ser feito? Ou o que deveria ser feito no Brasil para mudar essa situação?

MM Os movimentos sociais, a sociedade civil e os políticos engajados com a causa indígena devem se mobilizar! E isso está sendo feito. Mas há na sociedade brasileira um gigantesco desconhecimento sobre os povos indígenas, o que leva não só ao preconceito, mas também à omissão com relação às práticas de violência cometidas contra esses povos. No médio e longo prazo, uma iniciativa que considero importante e urgente diz respeito à ampliação de políticas públicas, principalmente de educação e cultura, que levem mais e melhores informações sobre os indígenas para as crianças e jovens de todo o Brasil. Esta seria uma aposta num futuro no qual a diversidade cultural brasileira e a proteção ao meio ambiente, estabelecidos na Constituição, sejam efetivamente reconhecidos e respeitados em sua multiplicidade e beleza. Sem dúvida estas são as mais importantes características da Nação brasileira, e o que a diferencia positivamente no cenário internacional. Muito temos ainda a aprender com os povos indígenas do Brasil e isso deve começar por uma atitude de respeito e garantia dos seus direitos constitucionais. Uma mudança de valores.

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